FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério
Casa de Hóspedes (16º. Episódio)
Nesse Domingo, a D. Laura disse para a D. Balbina, ao ouvido, a vizinha já reparou que a Adelaide diz o Gil para cá, o Gil para lá, sem senhor nem doutor, uma confiança nunca vista, isto é a gente a falar, que Deus me livre de maus pensamentos, quem fizer boa cama nela se deita, abanou a cabeça, franzindo os cantos da boca, e disse em surdina, ai coitadinho de quem morre, é o que lhe digo, D. Balbina, que quem cá fica governa-se.
Dona Júlia aprontava as limpezas de Primavera, um bocado atrasadas porque as dores nas cruzes, parecem cães a morderem, que coisa, mais não permitiam, a revelarem o desgaste das décadas, os ossos a somarem os anos de menopausa, têm sorte os homens que não sabem o que é isto, pois têm outros males, isso sabemos, os afrontamentos, os suores nocturnos, os picos de humor, a gordurinha à volta da cintura, outrora de vespa, como ele dizia, as saudades tão persistentes, nada de lamentos, ele gostaria de vê-la assim corajosa, a deitar mão à vida, a ir em frente, ele que continuava a ser a sua régua, a sua balança, o seu guia, na escuridão do peito, nas pequenas alegrias que iam acontecendo, a vida não para, o cantar do canário é a festa da casa, uma guerreira esta mulher, dizia ele quando ela não estava presente, foram os amigos comuns que lhe revelavam, provas de amor envergonhado, raro nos dias de hoje, pensava Dona Júlia, cotejando-o com o do Sr. Mário, com o da Adelaide, os dos amores desfeitos, nunca feitos. Outro homem, nem pensar, não era por nada, uma mulher livre, sem ter que prestar contas a ninguém, mas não, passados aqueles anos ainda não retirara a almofada da cama, agora dormia com uma em cima da outra, manias, nem mesmo o Sr. João da farmácia, um bonito homem, de boas falas, delicado, com um olhar muito vivo, irrequieto, com quem se demorava a conversar e com quem já tomara um cafezinho na leitaria, queria lá saber do que dissessem, a vida era dela, mas mesmo o Sr. João, que se mostrou interessado, não podia ser mais do que um conhecimento, uma amizade, ele que já lhe disse, ela não levasse a mal, não queria nem por sombras ofender, que tinha inveja do marido dela, da maneira como ela falava dele, passado já tanto tempo, ela comoveu-se, os olhos a inundarem-se, e ele a pedir perdão, nunca mais diria aquilo, ela, não faz mal, eu percebo-o, tive muita sorte, tive, Sr. João, assim o senhor venha a encontrar uma sorte como a minha.
(continua)
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